sexta-feira, 18 de junho de 2010

Eu sei, mas não devia.



Eu sei, mas não devia. (Marina Colasanti)



"Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números aceita não acreditar nas negociações de paz. E aceitando as negociações de paz aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisa tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas, de ar-condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma."



Primeiramente, olá! Há muito não passava por aqui, e confesso que realmente me fazia falta.
Escolhi esse texto, como um sinal de retorno, porque ele retrata exatamente o massacre do dia-a-dia, a tortura da rotina, do ''acostumar''. Mostra o quanto somos negligentes com a nossa felicidade, com o bem estar da própria alma, e o quanto nos preocupamos com o bem estar ''socialmente aceitável''. A gente se esquece do principal, essencial, crucial. Estar vivo, respirar, olhar pro céu e agradecer. Cada dia é um novo dia, uma nova chance de recomeçar. Não é apenas ''mais um dia da semana'', ''mais um dia de trabalho'', ''mais um dia de estudos''. É mais um dia de vida. Uma oportunidade de fazer diferente tudo aquilo que você fez ontem e que não te agradou. O hoje é o único remédio para a insatisfação, é o antídoto que te liberta daquele sentimento ucrônico de ''e se fosse diferente do que foi?''.
Vá você mesmo atrás da resposta para essa pergunta. Experimente outro caminho, outra estrada, outra roupa, outro forma de ser você. O mais importante é sentir.

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